domingo, 14 de março de 2010

A responsabilidade das idéias


Olá amigos que acompanham este blog!
Hoje gostaria de fazer algo diferente.
Há um tempo, li um livro pelo qual achei espetacular.
O titulo é "O Conflito das Idéias", de Voltaire Schilling, um escritor fantástico de nosso tempo.
Este livro eh divido em pequenos capítulos, que se discute história, filosofia, cultura, entre outros.
E hoje, aqui, vou lhe deixar um dos capítulos que mais gostei.

A responsabilidade das idéias

"As idéias não são responsáveis pelo que os homens fazem delas".
Werner Heisenberg (1901-1976).

Qual a responsabilidade "moral" do homem de pensamento nas ações que são cometidas, diretamente ou não, por sua inspiração? É possível isentá-lo de qualquer tipo de utilização que possam vir a fazer com aquilo que ele disse? Observa-se que em geral há uma tendência corporativa entre os intelectuais que leva-os a operar uma astuciosa separação entre a teoria e a prática.
Tendem a criar um abismo ético entre o pensamento e a ação, entre o homem que intelectualiza e o outro, o que executa, para em caso de as coisas não saírem como o devido, inocentarem o mentor intelectual, exatamente como propõe o físico Werner Heisenberg (que aliás serviu religiosamente aos nazistas durante toda a 2º Guerra Mundial), e que utilizei como epígrafe.
Essa atitude coloca os homens de pensamento numa confortável posição. Nada lhes pode ser imputado, porque jamais cogitam que suas abstratas especulações possam ter um objetivo nocivo qualquer. Dessa forma, os desastres que muitas das idéias provocam ao longo da história ficam sempre depositadas nas costas largas dos homens de ação, esses brutos destituídos de sensibilidade que não conseguem perceber as nuanças e gradações do pensamento sutil.
De certo modo essa tentativa de eximir moral e juridicamente a idéia, seja ela qual for, nada mais é do que uma atualização modernizada do velho preconceito encontrado pelos gregos entre o theorén - o que vê - e os pratikos - o que age -; entre aquele que pensa, geralmente o aristocrata culto e ocioso, e o que obra, um escravo, um artesão, ou qualquer outro infeliz condenado a trabalhar com as mãos.
Graças a esse cômodo sofisma - de colocar o pensamento acima de qualquer suspeita - libero Platão de ter sido um apologista da censura literária, apesar de ele ter abertamente pregado a sua necessidade; como também inocento Aristóteles de ter assegurado que a escravidão era o estado natural de muitos homens.
Numa restrição faço à obra de Ginés de Sepúlveda, o "Democrates primus", de 1531, no qual defendeu ser a guerra dos cristãos contra os índios "lícita" e compatível "com a prática da religião", respaldando o etnocídio que se seguiu à conquista das Américas.
Quantas vezes nesses séculos todos a pena colocou-se a serviço da infâmia? Se atentarmos para o próprio nascimento da literatura ocidental, verificamos que os poemas guerreiros de Homero eram apologias da pilhagem, pirataria, do sítio militar, do seqüestro de mulheres, das brigas pelos espólios, da vaidade e do gosto por derramar sangue.
E o que dizer dos livros do Conde Gobineau, de Houston Stewart Chamberlain ou de Vacheur de Lapouge, que estimularam o racismo e a luta racial? Evidentemente que aqueles cavalheiros bem intencionados não tinham nada a ver com as leis segregacionistas nem com os fornos crematório, onde, no nosso século, incineraram-se os "povos inferiores". Foram todos os homens interamente inocentes?
Absolvendo esses pensadores, reservamos-lhes um limbo especial - o da irrestrita irresponsabilidade moral absoluta - e ainda os apresentamos como vítimas de incontáveis mal-entendidos ou interpretações de má-fé feitas por políticos e líderes de massas de ignorantões que não souberam captar a essência pura e desinteressada do que realmente idealizaram para o bem da humanidade. Agindo-se assim, o estrago feito pelas idéias sempre será decorrente da ação, nunca da contemplação.

(SChilling, Voltaire/ O Conflito das Idéias -
Porto Alegre; AGE - 1999).

Caso alguém gostar deste post, deixo aqui o link do livro:
O Conflito das Idéias

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